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Relembrando uma tarde na cadeia de Cotia

5 de janeiro de 2007. Eu era então repórter do portal cotiatododia. Junto com meu amigo e grande jornalista Lumi Zúnica, fomos a primeira equipe de reportagem a entrar na cadeia de Cotia, então sob responsabilidade do delegado José Aparecido Sanches Severo, atualmente comandando o Departamento de Narcóticos (DENARC) da Capital.

Embora já tenha passado algum tempo, resolvi republicar essa matéria que considero uma experiência interessante e penso que o falido sistema penitenciário do Brasil fez com que a situação da cadeia de Cotia e de tantas outras por esse Brasil não tenha mudado muito, aliás, se mudou, arrisco dizer que foi para pior.

Minha primeira experiência com o tema foi ainda na Universidade, quando tive que fazer um documentário para o famigerado TCC – Trabalho de Conclusão de Curso – para então concluir o curso de Jornalismo, em 1997.  Vale dizer que na época, eu e meus colegas do grupo, passamos um grande “perrengue” e ao mesmo tempo uma grande frustração. No exato dia em que faríamos uma matéria no extinto Carandirú – onde hoje está o Parque da Juvetude, estourou uma rebelião, ou seja, nossa visita foi cancelada assim como todas as visitas agendadas em outros presídios. E nosso TCC e consequentemente a conclusão do curso de Jornalismo, estava em perigo.  Fomos salvos pela reportagem no Presídio Feminino no km 20 da Raposo Tavares, onde passei um dia todo junto às presas e rendeu, modéstia à parte, uma bela matéria.

Mas vamos à Cadeia de Cotia:

Era uma quinta-feira chuvosa. Um misto de medo e tensão tomou conta de mim, mas fui em frente, afinal, aquela seria uma experiência pra se guardar para toda a vida.

Por ingenuidade, acreditei que ao entrar na carceragem me depararia com os mais de 200 homens ali confinados, mas isso não ocorreu por questões de segurança, segundo argumentou o policial Rogério Nascimento, chefe da carceragem, que nos acompanhou em nosso “roteiro”.

Quem já leu o livro “Estação Carandiru” do médico Dráuzio Varela pode imaginar como me senti. Apesar de infinitamente menor que o complexo do Carandiru, a cadeia segue os mesmos “padrões” e rotinas.

Neste dia, 224 homens dividiam as 24 celas da carceragem da cadeia de Cotia (a capacidade é 98) composta por 2 alas, cada uma com 12 celas e um pequeno pátio, onde eram estendidas as roupas e o local que os presos utilizam para o famoso banho de sol, além de outras atividades. Aliás, não existem atividades na cadeia. Exceção feita aos cultos evangélicos. O ócio é o principal passa-tempo ali dentro.

Chegamos no momento da revista nas celas de uma das alas. E os presos daquele setor estavam na outra ala. Enquanto isso, foi possível entrar nas celas e ver de perto cada detalhe.

A essa altura, apesar do coração continuar batendo forte, o medo e a tensão já tinham passado e davam lugar à curiosidade. O compromisso com a notícia, com a informação falava mais alto e fui entrando.

O mau cheiro e a umidade de um ambiente escuro e lúgubre eram impossíveis de passarem despercebidos. Em uma das paredes, as inscrições das famosas facções criminosas PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho) definidos como “os primos leais”, embora ninguém admita que ali ainda existam representantes desses grupos. Cada cadeia é “administrada” por uma facção e se o preso pertencer a um grupo rival não pode ficar ali porque provavelmente será morto. Para evitar brigas e confusões, os rivais são colocados em cadeias distintas.

Apesar de tudo parecer muito bagunçado e sujo – pelo menos é a impressão de uma mulher entrando em um ambiente exclusivamente masculino – para Lumi, repórter experiente de várias coberturas em presídios, tudo ali estava muito bem organizado, como se estivessem esperando visitas – e olha que não avisamos que iríamos; chegamos de surpresa.

As celas de 4×4 metros possuem uma espécie de beliche de cimento e todas têm cortinas, vulgarmente conhecidas como “come-quieto”, porque servem como isolamento para as visitas íntimas. Algumas têm TV e fogão e até um feijão estava sendo preparado em uma delas. No mesmo ambiente está o vaso sanitário.

A falta de recursos exige improvisação e criatividade. Garrafas de refrigerantes se transformaram em porta-talheres, um pé de meia em coador de café e a caixa de cigarro em porta-escova de dentes. Mesmo em um dia chuvoso, os varais estavam cheios de roupas lavadas ali mesmo, dentro das celas. A limpeza de cada xadrez fica por conta de seus “habitantes”, que se revezam em tarefas como limpar o banheiro, varrer o chão, entre outras coisas.

A manutenção da disciplina e organização da “comunidade” fica por conta dos “faxinas”. Eles são os líderes. São 12 em cada ala. São aqueles que possuem ficha extensa no mundo do crime; são bandidos experientes e perigosos. Qualquer reivindicação que os presos queiram fazer ao delegado, por exemplo, deve antes passar pelos faxinas. Eles se reúnem e criam uma comissão para negociar. As divergências, brigas e discussões entre os presos também são intermediadas por eles, os ocupantes do primeiro xadrez.

Em um xadrez separado dos outros estavam e creio que ainda é assim,  o presos do “seguro”. Eles são autores de estupros e atentados violentos ao pudor. Oito homens ocupavam a minúscula cela. E como já é do conhecimento da população, este tipo de crime não é perdoado na cadeia.

O último xadrez é reservado aos evangélicos e na entrada se observa a inscrição “Casa de Oração”. Pastores das igrejas Congregação Cristã do Brasil, Batista e Assembléia de Deus realizam cultos ali três vezes por semana.

Por questão de segurança, homens não entram na carceragem; sejam advogados ou visitantes, para as orações ou que exerçam qualquer outra atividade porque podem ser confundidos com os presos.

Sem arrependimentos

O contato com os presos viria depois, através das grades, claro. Depois de deixarmos as celas, eles voltaram e ficaram por ali nos observando (a sensação de ser observada por eles não foi nada boa e os arrepios voltaram).

Dois faxinas se aproximaram da grade e falando em nome dos colegas, admitiram que houve uma certa melhora nas condições da cadeia, mas reclamaram da demora da Justiça na definição da situação dos presos. Outra reclamação era a de que muitos estão presos por abusos dos policiais, que forjam crimes para prender aqueles que já têm antecedentes.

Não quiseram responder que tipos de crime cometeram, mas ao perguntar se estavam arrependidos, foram logo dizendo que não tinham nenhum motivo para isso. “Não podemos estar arrependidos de algo que não fizemos”. Encerraram a conversa pedindo justiça e que a sociedade dê um voto de confiança a eles, pois “muitos estão aqui injustamente”.

Publicada originalmente no portal www.cotiatododia.com.br / Fotos: Lumi Zúnica

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