
Pesquisa com lutadoras mostra o jiu-jítsu como espaço de resistência feminina
jiu-jítsu, literalmente traduzido como “arte suave”, é hoje a arte marcial mais popular no País, mas ainda é um espaço marcado pela hegemonia masculina. Dados do Diagnóstico Nacional do Esporte, publicado pelo Ministério do Esporte em 2015, apontam que a presença de homens na modalidade é cinco vezes maior do que a de mulheres. Mesmo assim, cada vez mais praticantes femininas persistem nos tatames, enfrentando desafios que vão além da luta corporal.
Para compreender esses percursos, a pesquisadora Luciana Neder Giancristoforo, sob orientação da professora Soraia Chung Saura, desenvolveu em sua dissertação de mestrado uma pesquisa que mergulhou na experiência vivida por seis mulheres com mais de dez anos ininterruptos de prática de jiu-jítsu, além do depoimento da própria pesquisadora, explorando os sentidos atribuídos ao corpo, ao treino e às relações dentro do esporte. O trabalho foi apresentado à Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP em abril.
Os relatos mostram que, apesar das dores, das marcas físicas e das barreiras sociais, o jiu-jítsu também é fonte de fascínio e pertencimento. Mais que uma arte marcial, aparece como uma prática que mobiliza afetos, memória e identidade, abrindo espaço para compreender como mulheres constroem sentidos de pertencimento em um ambiente historicamente masculino.
O corpo que luta e aprende
A pesquisa buscou registrar as mudanças na autopercepção corporal de mulheres praticantes de jiu-jítsu, por meio de entrevistas qualitativas semiestruturadas de aproximadamente 90 minutos. As participantes tiveram a oportunidade de complementar suas narrativas em encontros adicionais, permitindo um aprofundamento em aspectos complexos ou esquecidos. A análise foi realizada com base em uma abordagem fenomenológica, e, para garantir a privacidade e o conforto, as identidades foram preservadas.
Além da técnica, a “arte suave” foi descrita como um caminho de transformação pessoal. Para muitas mulheres, o jiu-jítsu se tornou uma escola de consciência corporal, resiliência e igualdade. “O que me fascina no jiu-jítsu é você sempre ser uma aprendiz, porque me bota sempre no mesmo lugar de todo mundo. Ninguém está acima de ninguém”, disse uma praticante.
As entrevistadas relataram ainda como a prática influencia na rotina, a forma de viver e até a maneira de se perceber no mundo. Entre a iniciação e a permanência, as narrativas mostram como as mulheres aprendem a lidar com seus limites, desenvolvem autoconfiança e encontram no tatame um espaço de expressão e pertencimento.
A dissertação também destaca a importância do dojô como espaço de convivência e disciplina. Uma das entrevistadas lembrou: “Desde que comecei no jiu-jítsu, aos 15 anos, eu aprendi que também era responsável pela limpeza do tatame. Esse dia chegou, e realmente continuo limpando todos os tatames em que eu piso”. Esses elementos mostram que o aprendizado do jiu-jítsu não se limita ao aspecto técnico, mas se manifesta na vida diária, na forma como as praticantes se relacionam consigo e com os outros, transformando-se em um modo de ser no mundo.

Com a arte marcial, elas relatam que aprenderam a manter a autoconfiança, já que uma postura inadequada pode dar benefício aos oponentes. Também passaram a expressar seus sentimentos e a dizer “não” quando necessário, especialmente em situações de assédio. Além disso, aprenderam a olhar nos olhos das pessoas para se sentirem mais encorajadas e resolver conflitos do dia a dia, pois saber lidar com o medo é parte da luta.
A prática também contribui para a saúde mental. Outra entrevistada destacou que o treino vai além do bem-estar físico, contribuindo para melhorar sua insônia, ansiedade, vício no cigarro e para a redução do colesterol. Em suas palavras, ela afirma que, sem o uso de medicamentos, o exercício tem sido a chave para controlar esses aspectos de sua vida, sendo um investimento valioso para a saúde.
Barreiras, assédio e representatividade
Apesar do fascínio, os depoimentos também revelam dificuldades. O preconceito, a invisibilidade e até episódios de assédio marcaram a trajetória de algumas praticantes. “Ele me puxou para um pouco longe e falou no meu ouvido: ‘quando você vai ser minha?’. Eu fiquei sem reação, desconversei e saí”, relatou uma entrevistada.
Embora não existam estudos conclusivos a esse respeito, é possível observar uma tendência no jiu-jítsu que se assemelha à dificuldade das mulheres em atingir posições de liderança no mercado de trabalho, já que também enfrentam obstáculos na progressão de faixas. Uma das praticantes compartilhou sua experiência: “Eu levei 13 anos da faixa marrom à faixa preta. Eu estava mantendo uma baixa de frequência de treino por causa do trabalho, mas ainda continuava treinando. Só que eu me sentia invisível na academia. […] Dava aula melhor que muitos professores faixas pretas, e continuava faixa marrom. Foram longos e duros anos”. A faixa preta pode ser obtida quando se está há pelo menos um ano na faixa marrom.

Os estereótipos ligados à ideia de corpo frágil e a resistência dos colegas homens também são um desafio para as jiu-jiteiras. As diferenças físicas são um desafio real, mas o preconceito nos tatames muitas vezes se torna ainda mais marcante, e as mulheres são maltratadas pelos homens: “Quando as mulheres começam a frequentar aulas mistas, é muito difícil, pois muitas são maltratadas pelos homens devido às enormes diferenças de tamanho e força. As mulheres raramente recebem aquela vibração positiva que os caras recebem quando rolam [o sparring, a luta corpo a corpo]”, contou uma lutadora.
Os relatos evidenciam como a permanência feminina no esporte é atravessada por barreiras de gênero que vão do assédio até injustiças institucionais. Ao mesmo tempo, revelam a força das participantes para resistir e insistir em ocupar os tatames. O estudo aponta que essa resistência não se limita somente ao âmbito esportivo, mas também reflete lutas sociais mais amplas por igualdade e reconhecimento.
A representatividade surge como elemento central para explicar a permanência. Ver outras mulheres em posições de destaque inspira novas trajetórias e desafia a hegemonia masculina. Um fenômeno relatado pelas lutadoras está relacionado ao esforço em apoiar iniciantes como forma de fortalecer a presença no esporte – e por lembrar como foi importante receber ajuda no início de uma pessoa mais experiente.
No balanço dos depoimentos, o jiu-jítsu aparece como um espaço paradoxal. Ao mesmo tempo em que expõe vulnerabilidades e dificuldades, abre caminho para força e pertencimento:
“Elas não vestem apenas o kimono – vestem cicatrizes, silêncios engolidos, e a firmeza de quem se recusa a ceder. […] São guerreiras – não porque não sentem medo, mas porque não o deixam decidir. No jiu-jítsu, encontraram mais que técnica: encontraram irmandade, voz, coragem.” – Depoimento à pesquisadora Luciana Neder Giancristoforo.
A dissertação de mestrado, intitulada A mulher na arte suave: uma análise fenomenológica da participação feminina no jiu-jítsu brasileiro, está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, onde pode ser acessada na íntegra.
[Do Jornal daUSP, Texto de Guilherme Ike, estagiário sob supervisão de Paula Bassi, da Seção de Relações Institucionais e Comunicação da EEFE]
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